Tuesday, November 30, 2010

...

Acho que eu devia começar a fazer algo, a trabalhar, agora que estou aprendendo a ver. Tenho 28 anos, e praticamente não aconteceu nada. Vamos recordar: escrevi um ensaio sobre Carpaccio, que é ruim, um drama chamado O Casamento, que pretende provar algo falso com meios ambíguos, e versos. Ah, mas versos significam muito pouco se escritos cedo. Devia-se esperar, reunir sentido e doçura numa vida inteira, se possível bem longa, e depois, bem no fim, talvez conseguissem dez versos bons. Pois versos não são, como as pessoas imaginam, sentimentos (a esses, temos cedo demais) - são experiências.

É ridículo. Estou aqui sentado em meu quartinho, eu, Brigge, que completei 28 anos, e de quem ninguém sabe nada. Estou aqui sentado, e não sou nada. E, contudo, esse nada começa a pensar, e num quinto andar, numa cinzenta tarde parisiense, pensa estes pensamentos:
É possível que ainda não tenhamos visto, reconhecido e dito nada realmente verdadeiro e importante? É possível que tenhamos tido milênios para contemplar, refletir e anotar, e deixássemos esses milênios passarem como uma hora de recreio na escola, em que se come pão com manteiga e uma maçã?
Sim, é possível.
É possível que, apesar do progresso, da cultura, da religião e da sabedoria universais, tenhamos permanecido na superfície da vida? E que mesmo essa superfície - que em si já seria alguma coisa - esteja recoberta de um tecido tão incrivelmente monótono que nos pareça móveis de sala numas férias de verão?
Sim, é possível.
É possível que toda a história da humanidade tenha sido um mal-entendido? Que o passado seja falso porque sempre falamos em multidões, como numa reunião de muita gente, em vez de falarmos no único, em torno do qual todos se agrupavam porque ele era estrangeiro e morria?
Sim, é possível.
É possível termos acreditado na necessidade de recuperarmos fatos acontecidos antes de sermos nascidos? É possível que tenhamos de recordar a cada indivíduo que ele nasce dos antepassados, que portanto contém em si todo esse passado, e que nada tem a aprender com outros homens que pretendem possuir um saber melhor ou diferente?
Sim, é possível.
É possível que todos esses homens conheçam bem um passado que nunca existiu? Que para eles todas as realidades nada sejam; e sua vida transcorra desligada de tudo, como um relógio num quarto vazio?
Sim, é possível.
É possível que nada se saiba de donzelas que, ainda assim, vivem? É possível que se diga 'as mulheres', 'as crianças', 'os rapazes', sem pressentir (apesar de toda a cultura, sem pressentir) que há muito essas palavras não têm mais plural, mas apenas incontáveis singulares?
Sim, é possível.
É possível existirem pessoas que dizem 'Deus' e pensem que isso é um ser que lhes é comum? Vejam esses dois meninos de escola: um compra uma faca, o vizinho compra outra idêntica no mesmo dia. Depois de uma semana mostram-se mutuamente as facas, e acontece que só remotamente ainda se parecem - tão diversamente se desenvolvem em mãos diferentes. (Sim, diz a mãe de um deles, por que vocês precisam gastar tudo logo?) E então: é possível acreditar que se possa ter um Deus sem usá-lo?
Sim, é possível.
Mas se tudo é possível, ao menos vagamente possível, então, por tudo que há de sagrado no mundo, algo tem de acontecer. O primeiro a ter esse pensamento inquietante precisa começar a fazer algo que foi omitido; mesmo se for apenas um sujeito qualquer, talvez nem mesmo o mais indicado: simplesmente, não há outro melhor. Esse jovem estrangeiro insignificante, esse Brigge, terá de sentar-se num quinto andar e escrever, dia e noite: sim, terá de escrever, e este será o fim.

Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge

No comments: